quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Raia 30 anos. Uma revista contemporânea.

Aos que me perguntam por que não escrevo críticas teatrais eu sempre respondo a mesma ladainha: porque amo demais o que faço e não pretendo parar, porque para ser um crítico é preciso entender muito do riscado e, finalmente, porque tenho amigos que são grandes artistas a quem dirijo minhas impressões na intimidade. Algumas vezes nem tanto... mas eles já me conhecem e compreendem esta minha franqueza e objetividade. Escrevo só, e sempre, quando gosto muito de algo e sou tocado de alguma forma. E quero escrever sobre Raia 30 anos.

Pode parecer, num primeiro momento, para um olhar menos avisado, um mero exercício de ego ou vaidade. E, ainda que fosse, nesta profissão, quem atira a primeira pedra? De um jeito ou de outro, todos nós buscamos o riso, a lágrima, o aplauso, a crítica, o prêmio... transformar ou tocar o outro – como se fôssemos deuses capazes dessa transformação na plateia.



E Claudia Raia em cena vai além da vaidade. Ela conta um sonho de menina, brinca com os desejos de adolescente, expõe a mulher do seu tempo, que vai à luta. É a diva, a deusa, a louca, a santa, a irônica, a extravagante, a kitsch, a moderna, a engraçada, a debochada, a abusada e a sincera. E, faz um verdadeiro exercício de revisitação do nosso teatro de revista mais popular. Muito mais graças ao entendimento profundo que Miguel Falabella tem desse tipo de estrutura e linguagem, do que pelo conhecimento que o diretor, José Possi Neto, parece ter. O espetáculo tem mais a cara (e parece ter a mão também) de homens como Falabella, Silvio de Abreu ou Jorge Fernando (também citados em cena) do que do próprio Possi.

E está tudo ali, as memórias e as histórias. Num grande espetáculo de revista – que a atriz chama de show. Com todos os elementos da revista: escadarias, colunas gregas e adornos art-déco, baldaquins, ribaltas, penachos, paetês, bananas, viadagem e sacanagem (não necessariamente nessa ordem). Tem número de plateia e de cortina, tem coristas e boys, e tem troca de roupa... como toda vedete merece.



E que se dane o ego da primeira atriz! Ela tem a capacidade de debochar de si mesma como poucas em nosso teatro, falando em primeira pessoa. Talvez como teve Dercy Gonçalves, que também mandava a opinião alheia à merda e sempre seguia em frente graças ao seu público.

E Cláudia não tem nem medo nem vergonha de se expor diante desse público. Não faz papai-e-mamãe. Manda ver! Franze o nariz quando fala de TV, embora saiba que é seu maior veículo. Fala palavrão, mas também diz palavrinhas doces sobre nossos antepassados artísticos. Fala de preconceito e de bunda à mostra na TV – usada e explorada como foi o corpo de Charity. Mas rindo disso!   

E evoca uma trajetória que se confunde com nosso musical contemporâneo. Num primeiro quadro, como num tableau vivant – tão comum nas antigas revistas – surgem seus fantasmas: a mãe e a irmã, seus personagens mais emblemáticos, um Walter Clark que se confunde com Tonhão, figuras saídas de coreografias de Fosse e Lenny Dale (este, num dos momentos mais tocantes do espetáculo). Talvez seja esta a grande contribuição de Possi: a poesia, a elegância e o glamour. 

A direção musical é esperta e ampara o elenco criando condições para que todos cantem com conforto e, em especial, a protagonista. Somada às novas letras escritas por Miguel, o resultado sonoro é divertido, alegre, e emociona quando necessário – apesar de alguns problemas de equalização de instrumentos, bases e microfones (pelo menos quando vi). Vale mencionar a criação de uma overture muito agradável para ser ouvida durante as sempre maçantes projeções iniciais.



Ao lado de Claudia, um elenco delicioso de jovens atores e bailarinos muito bem orquestrados por Tania Nardini em coreografias de inspirações diversas, mas sobretudo em Bob Fosse. E, claro, Marcos Tumura. Um dos artistas mais competentes do nosso musical, no que diz respeito a cantar/dançar, mas sobretudo atuar suas canções, evocando um MC camaleônico, mas com identidade sempre presente.

De resto, o que não é resto! Os figurinos sempre muito cuidadosos e competentes de Fábio Namatame aliados à luz de Drika Mathes criam todos os ambientes necessários e evocam as inúmeras referências que o roteiro e a direção impõem.

Defeitos? Tudo tem defeito. Eu, você, até minha mãe tinha. Mas felizmente não estou fazendo uma crítica. Estou falando de amigos. Publicamente rasgando seda.